terça-feira, 14 de outubro de 2014

A sobrevalorização do conflito israelo-palestino

As guerras matam o bom senso. É difícil, mas não consigo deixar de dizê-lo: o conflito israelo-palestino teve, no verão de 2014, uma atenção mediática (e política) exagerada. Pelas razões seguintes.
  1. Facilmente se encontra uma dúzia de conflitos, ainda em curso, onde morreram mais seres humanos. Mais: no último meio século (49 anos) menos seres humanos perderam a vida na guerra israelo-palestina do que apenas nos últimos três anos (3) na Síria, ou nos últimos dez anos (10) no Iraque (para não sair do Médio Oriente; na guerra do Congo, só entre 1998 e 2003 poderão ter morrido uns cinco milhões de pessoas, ou seja, umas duzentas vezes mais pessoas; não contam porque eram negros?). E todavia, incrivelmente, sempre que há umas trocas de rockets entre Israel e a Palestina, dizem-nos (gastando toneladas de papel de jornal e gigabytes de caracteres) de um lado que há um «genocídio» em Gaza, e do outro que «a existência de Israel está em risco». Acontece (felizmente), que os palestinos de Gaza estão muito longe da extinção e que o Hamas não tem capacidade para ocupar Israel (mais facilmente são extintos os yazidi ou os cristãos do Médio Oriente, ou o Iraque deixa de existir).
  2. É um conflito essencialmente resolvido. Nenhum outro conflito no mundo depois do final da 2ª Guerra Mundial deve ter tido tanta atenção diplomática e de entidades políticas externas (e dos media). Resultou? Sim. Hoje, a guerra israelo-palestina não se propaga para fora das fronteiras daquela região minúscula (ao contrário do que acontecia nos anos 70 e 80). Está «contida». O nível de violência local também baixou. Os israelitas e os palestinos estão satisfeitos? Não. Ambos os grupos querem terra e recursos que os outros têm, ou seja, querem resultados incompatíveis a longo prazo. A esse respeito, terão que mudar de opinião. Ou continuar como estão.
  3. É uma guerra que não é do século 21. O conflito sangrento e global a que estamos a assistir hoje no Médio Oriente e no Norte de África é entre islamofascistas e coligações de laicos democráticos (uns) ou ditatoriais (outros). O conflito israelo-palestino não encaixa facilmente nesta polarização. Sobrou da segunda metade do século 20, quando a esquerda alinhava pelos palestinos por anti-colonialismo e porque a OLP era vagamente «socialista», e a direita por Israel porque era uma democracia isolada. Este alinhamento é anacrónico quando a liderança palestina pertence aos islamistas radicais e quando já houve eleições multipartidárias em boa parte dos países do Médio Oriente e do Magrebe. Transferir o confronto esquerda-direita para este conflito deveria ser coisa do passado, mas explica em parte a atenção que ainda tem. Como em parte essa atenção resulta de envolver judeus. E também de passar-se numa terra dita «santa» (irracionalmente, muita gente acredita que o «berço» de religião e meia deveria ser um pacífico paraíso).
P.S. Escrevi o essencial deste artigo em agosto. Publico-o hoje notando que felizmente já perdeu alguma actualidade, e que nos últimos dois meses se tem reflectido mais sobre o conflito com o «Estado Islâmico». Hei-de escrever sobre o assunto.


«Peace anthem for Israel and Palestine» (Tim Minchim)

1 comentário :

Manuel Tiago disse...

No tempo do Botas de Santa Comba também se "justificava" a continuação da guerra colonial com o facto de morrerem mais pessoas em acidentes rodoviários do que na guerra.
Argumento lamentável.