sexta-feira, 15 de junho de 2007

Natureza e cultura, até na política

O Rui A. do Portugal Contemporâneo, não sei se mais saudoso do salazarismo se do nazismo, não consegue olhar para o mundo sem o enfiar nas categorias binárias do tempo da guerra fria. Se se notar também que as suas principais referências sobre o perpétuo debate entre natureza e cultura (Lorenz e Pavlov, logo no título...) nunca parecem ter menos do que cinquenta anos, confirma-se que estamos perante alguém irremediavelmente amarrado às categorias mentais de meados do século passado.

Mas vamos à substância: o Rui A. defende a sua asserção de que a propriedade privada está inscrita na natureza humana referenciando alguns autores estudiosos «do comportamento inato de algumas espécies animais, sobretudo dos primatas, onde - pasme-se! - encontraram uma complexa organização social assente na delimitação de um (ou vários) territórios, com marcação do espaço próprio de cada animal, dos direitos inerentes a cada um dos animais do grupo habitante, com distribuição de tarefas entre eles, isto é, com repartição das funções sociais, com uma hierarquia vertical, e com uma afectação de recursos determinada pelo macho dominante do grupo». Francamente, parece-me que este argumento do Rui A. serve para defender a «naturalização» dos territórios estatais, das hierarquias não eleitas, das ditaduras patriarcais, da poligamia e da escravatura (o que pode reflectir apenas a inifinita nostalgia de um reaccionário clássico por um mundo de ordem, autoridade, hierarquia, machismo e tradição). Territórios demarcados muitas espécies animais têm (incluindo os felinos, por exemplo) e a partir do momento em que temos pelo menos uma família alargada residente, não sei se estaremos mais próximos da partilha cooperativa de recursos, e portanto do comunismo (ele próprio um sistema autoritário), ou da propriedade privada (que eu na minha ingenuidade pensava que seria individual). E como também não tenho conhecimento de que as crianças nasçam com o sentido inato do respeito pela propriedade alheia, a tese de que a «propriedade privada» é «natural» soçobra, seja qual for o critério de corroboração. Mas é significativo que um liberal ortodoxo veja «direitos» onde há apenas autoridade e submissão sem possibilidade de arbitragem ou sequer de negociação...

Sejamos claros: deixando de lado a obtenção de alimentos e o seu consumo, não existem comportamentos mais naturais no homem do que a violação sexual e o assassinato de rivais. Nesse sentido, instituições como a escravatura, o casamento enquanto aquisição da parte feminina ou a poligamia, a guerra e o genocídio, são profundamente «naturais» (um jusnaturalista diria que fazem parte do «Direito natural»...). Mas não é por terem sido práticas constantes e tradicionais desde tempos imemoriais que hoje deixamos de as considerar instituições bárbaras, lesivas da dignidade humana e impróprias de qualquer sociedade presente e futura minimamente desejável. A marca da civilização e do progresso(!), penso eu, é justamente o controlo, pessoal ou social, dos nossos piores instintos.

Se não nos devemos iludir quanto à natureza humana, em particular não devemos projectar nela os nossos desejos ideológicos, sob o risco de mais à frente sermos corrigidos pela própria natureza. O meu interlocutor liberal ortodoxo acha que as ditaduras comunistas «implodiram porque negaram a propriedade privada aos cidadãos, formatando artificialmente a vida social em torno da ideia contranatura do colectivismo». Mas não é bem assim. As ditaduras comunistas não negaram a propriedade privada na forma em que já existe desde o paleolítico (objectos pessoais), nem sequer a que todos podem adquirir desde o século 18, em havendo oferta e bagalhoça (casa própria); negaram apenas a propriedade privada enquanto parte da economia de larga escala. (E implodiram mais pela sua ineficiência comparativa do que por outra razão qualquer, por muito que isso custe a todos os defensores das liberdades individuais.)

Numa segunda tentativa, o medievalista confesso, impenitente e saudoso argumenta noutro sentido, defendendo que a propriedade privada desempenhou um papel imprescindível ao longo de toda a história da Europa, de Roma à Magna Carta. Será verdade, mas outro tanto poderia ser dito de formas comunitárias de propriedade colectiva. E muito mais poderia ser dito dos impostos, que os liberais ortodoxos, no limite, argumentam serem contra natura, e que no entanto estruturaram todas as sociedades humanas complexas depois do neolítico...