sábado, 3 de fevereiro de 2007

Hélio Schwartsman: «Santa ilusão»

«Ao contrário de 97,3% do mundo --incluindo vários ateus--, achei delicioso o último libelo do biólogo britânico Richard Dawkins contra Deus. Falo do livro "The God Delusion" (a ilusão ou o delírio de Deus; a obra ainda não foi traduzida para o português), que recebeu críticas acerbas mesmo de racionalistas militantes, como Marcelo Gleiser no caderno Mais!.

É fácil entender a revolta principalmente de religiosos com o texto de Dawkins. Os qualificativos que ele encontrou para aplicar a Altíssimo incluem: "misógino", "homófobo", "racista", "infanticida", "genocida", "filicida", "pestilento", "megalomaníaco", "sado-masoquista" e "valentão caprichosamente malévolo". O autor de fato não se vale de meias palavras para defender sua tese de que a religião é um grande engodo, um mal que deveria ser extirpado da face da terra. Só que Dawkins não se limita a afirmar essas coisas. Ele também pretende provar, com argumentos, que Deus é uma hipótese altamente improvável e totalmente desnecessária.
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O livro melhora bastante quando Dawkins volta a seu campo de atividade biológico e sugere explicações para a universalidade da religião entre humanos. Sua hipótese é a de que a fé em deuses/Deus é uma espécie de efeito colateral adverso de mecanismos cerebrais adaptativos. Teríamos uma propensão à credulidade cujo valor pode estar em fazer com que crianças obedeçam a seus pais sem levar em conta se o que eles dizem faz ou não sentido. Essa confiança incondicional pouparia os jovens rebentos de atirar-se em rios infestados de crocodilos, caminhar na encosta de precipícios e evitar outras ameaças que poderiam custar-lhes a vida caso insistissem em aprender por conta própria.

Outro ponto alto é quando ele relata experimentos psicológicos, notadamente os de Marc Hauser, que sugerem que o imperativo categórico kantiano está inscrito dentro de nós. Padrões de moralidade semelhantes aos descritos pelo filósofo prussiano --notadamente a idéia de que não devemos usar outros seres humanos apenas como meio para atingir objetivos-- fariam parte de nossa programação cerebral. Se isso é verdade, e tudo indica que é, cai por terra o argumento utilitarista de que a religião é a fonte da moralidade e é importante para manter a paz social. As pessoas não deixam de cometer crimes por temer ir para o inferno, mas porque têm um impulso biológico para acatar normas que julgam justas, em que pese a existência de certos indivíduos que sempre tenderão a burlar as regras.

A mais feroz das críticas a Dawkins, porém, não é de conteúdo ou argumentação. Censuram-lhe o próprio projeto do livro, que é o de convencer o maior número de pessoas a abraçar o ateísmo e os já ateus a "sair do armário". Viram aí uma "intolerância" em tudo igual à das religiões.

Talvez, mas acho que os críticos perdem de vista o profundo senso de humor com que "The God Delusion" foi escrito. O livro todo é uma grande provocação, mas uma provocação "à propos". Por que os textos usados nas escolas dominicais podem ter caráter doutrinário e uma defesa do ateísmo não? Por que, pergunta-se o autor, devemos aceitar a convenção social segundo as quais idéias religiosas devem ser respeitadas? Uma idéia idiota é sempre uma idéia idiota, não importando o campo semântico em que seja proferida. Por que podemos afirmar sem nenhum problema que determinada tese científica, econômica, ou jurídica é imbecil, mas, se ousamos dizer o mesmo em relação a uma "verdade religiosa", somos tachados de intolerantes e quem sabe até processados?

Se alguém nos dissesse acreditar que brotou de uma árvore e que sempre que segura sua caneta ela se transforma num coelho voador, teríamos boas razões para duvidar da sanidade desta pessoa. Por que então não tratamos como louco o católico que afirma que Jesus nasceu sem pai biológico, de uma mãe virgem e que, toda vez que se celebra uma missa, o vinho se torna sangue e um tipo esquisito de biscoito se converte no corpo do homem?

Para colocar questões mais republicanas, por que um ministro religioso, apenas por ser religioso, fica livre do serviço militar, enquanto pessoas que apenas deplorem a violência correm o risco de ter de servir ao Exército? Por que igrejas não pagam impostos e eu, que também tenho um sistema de crenças e uma ética (na minha opinião muito melhores), não faço jus à mesma regalia?

(...)»

(Hélio Schwartsman)

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