sexta-feira, 1 de setembro de 2006

América Latina: a primeira década do resto da História deles

Sempre me pareceu desnecessário fazer polémica interna neste blogue. Partindo do princípio que os colaboradores partilham os mesmos valores, é até interessante vê-los chegar a conclusões opostas, e eu sou dos que acreditam que duas pessoas com os mesmos princípios políticos podem chegar a conclusões diferentes. No entanto, como o Rui Fernandes me interpelou directamente sobre a Bolívia (uma possível «conlusão diferente» conforme aquilo que se valoriza), talvez valha a pena abrir uma excepção...
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Quanto ao fundamental: não concordo com a caracterização da Bolívia, ou mesmo da Venezuela, como «regimes anti-democráticos». Morales acedeu ao poder por via democrática, e Chávez já venceu mais eleições do que qualquer outro presidente das Américas. O Rui responder-me-á que as democracias podem eleger ditadores, e que existem indícios de que Morales e Chávez o virão a ser. Aqui, há necessariamente uma certa dose de especulação quanto ao futuro que nos deve impôr prudência.
Qual é o facto mais relevante na América Latina da última década? Obviamente, a subida ao poder da esquerda, dividida entre a «facção moderada» (Lula e Bachelet, entre outros) e a «facção radical» (Chávez e Morales). Depois de um século 20 essencialmente ditatorial, pela primeira vez o poder político desafia quer as oligarquias que dirigem estes países quase desde as independências, quer o conservadorismo católico. É caso para nos regozijarmos.
Evidentemente, há insatisfações e apreensões. Há quem sinta que Lula não traz a mudança que prometeu (e Heloísa Helena, a dissidente de esquerda do PT, tem cerca de 10% nas sondagens eleitorais). E há quem tema, como o Rui Fernandes, que movimentos como os de Chávez ou Morales possam descambar em ditaduras.
Nas heteróclitas coligações que são o MAS boliviano e o Movimento V República da Venezuela, há muito de que não gosto: a demagogia e o «indigenismo», por exemplo. A primeira é a doença inevitável das democracias recentes, o segundo (mais preocupante no caso boliviano) representa um reacionarismo anti-modernidade, com algum obscurantismo, racismo e machismo (e por aí criará contradições, a prazo).
No exercício concreto do poder, o mais desagradável é a diplomacia de Chávez, que, de Teerão a Minsk, tem cumprimentado os piores déspotas do planeta (falhou alguns, como o rei saudita, que é cumprimentado pelo Bush). Embora estes (e outros...) aspectos me mereçam críticas, não tenho notícia de que qualquer um dos dois tenha suspendido a Constituição ou impedido a oposição de concorrer a eleições. Por isso, dou-lhes o benefício da dúvida (até ver...). Mas não me incomoda nada que se lhes critiquem as derrapagens autoritárias e a desastrosa política externa. Antes pelo contrário, acho que é assim que os ajudamos.

10 comentários :

Rui Fernandes disse...

Antes de mais nada o que haja de polémica interna no meu post é periférico, o escreveria mesmo que não fosse internamente polêmico o que não quer dizer que me visse obrigado a não escamotear o que eventualmente houvesse de "internamente polémico" no assunto. Em nenhum momento eu caracterizo Venezuela ou Bolivia como regimes anti-democráticos, muito pelo contrário, e tu bem o sabes. A subida da esquerda na América Latina por si mesma não me inspira regozijo, e é aqui que talvez me distancie (um pouco) do teu tipo de visão das coisas (destas coisas). Me regozijo pela esquerda que subiu ao poder e mostrou ser competente e democrática como é o caso absoluto do Chile e menos absoluto do Brasil. Eu não lhes dou o beneficio da dúvida a Chavez e Morales em quanto a serem ditadores pois sei que não o são exactamente, assim como não lhes dou quanto a serem tendencialmente autoritários e deturpadores do sentido de democracia por que sei que são ambas coisas. Quanto a definição de posições críticas perante o muito que há de criticável em Chavez e Morales está claro que concordo absolutamente.

Ricardo Alves disse...

«Em nenhum momento eu caracterizo Venezuela ou Bolivia como regimes anti-democráticos»

Bom, tu escreveste: «tal como repudiamos qualquer apoio a regimes anti-democráticos, o mesmo se aplica então em relação a todos, incluindo Chavez e Morales». E antes, há uma referência aos que trabalham «contra [a democracia]».

De resto, quanto a serem autoritários, talvez o sejam menos do que os presidentes anteriores dos respectivos países (na Bolívia, o Governo anterior causou seis mortos na repressão de protestos).

Rui Fernandes disse...

Não entendestes a frase, que quer dizer que também Chávez e Morales enquanto líderes de democracias deveriam também eles repudiar regimes anti-democráticos e seus chefes. Lê de novo e verás que é isso que quero dizer. Quanto a trabalharem em contra da democracia mesmo sendo democraticamente eleitos me parece óbvio na gestão de Chávez por diversas razões que juntas justificam a minha afirmação: aumento e ameaças de mais aumentos do limite de mandato presidencial mesmo que por via referendaria; revisões de cáracter duvidoso da liberdade de imprensa; ajuda e apoio a regimes anti-democraticos estrangeiros; intromissão directa na vida eleitoral de democracias vizinhas; culto da personalidade; evidências de amplo clientelismo partidário; etc.

No caso de Morales temos muito menos tempo de poder mas já se podem notar algumas coisas como se vê.

Não me parece justo considerar que o governo anterior a Morales era autoritário quando na verdade era fraco e esteve sujeito a pressões dos grupos que vieram a apoiar Morales que estão longe de poderem ser considerados absolutamente democráticos.

sagher disse...

mas alguém me diz a razão prq devem os paises optar por regimes como o nosso? afinal aquilo que se está a pôr em causa, quando se exportam regimes e se quer impôr ao mundo uma unica forma de organoização social, é o motor da própria história. a capacidade humana para diversificar. um mundoi a uma só voz só serve os interesses de quem está intertessado em controlar os movimentos sociais. e para ser sincero, a critica da obra 1984 nunca se aplicou tão bem a um regime como este em que vivemos. a democracia nao passa do controle social pelo poder económico, através da manipulação da comunicaçãpo social e semn duvida que os jornalista de hoje vendem a liberdade e a consciencia por um punhado de lentilhas.

a.castro disse...

Excelente a listagem dos blogs por categorias (esquerda algo moderada, algo radical, entre moderada e radical, de direita, nem sempre sobre política, anticlericais, de gajas e noutros idiomas que não este).
Sinceramente não sei e por isso pedia o favor de me informarem em qual categoria se "encaixa" o Esquerda Republicana
Procurarei a resposta. Muito obrigado!

Ricardo Alves disse...

Caro «a. castro»,
já estava a estranhar ninguém fazer essa pergunta.
Qual é a sua opinião?

Ricardo Alves disse...

Rui,
1. Tanto Chávez como Morales acederam ao poder em eleições democráticas, e não deram qualquer sinal substantivo de quererem romper quer com a democracia representativa, quer com aquilo a que os marxistas chamariam o «modo capitalista de produção».
2. Chávez faz diplomacia junto de ditaduras? Sim, mas os EUA também (Arábia Saudita, Paquistão...), e Portugal idem (é ver as nossas relações sempre muito cordiais com a ditadura angolana). Se eu gosto de qualquer destas situações? Não. Mas são relações Estado a Estado.
3. Gostaria de compreender porque és tão severo com a Venezuela e a Bolívia e tão complacente com Israel. Israel viola uma série de direitos individuais que são garantidos na Venezuela e na Bolívia. O direito a mudar de religião, o direito a fundar um lugar de culto, o direito de constituir família, etc. E, no que toca aos mais básicos dos direitos humanos, há casos de tortura em Israel, enquanto não tenho conhecimento de casos de tortura sistemática na Venezuela ou na Bolívia.
http://www.stoptorture.org.il/eng/account.asp?menu=9&submenu=1
http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/middle_east/353491.stm

Rui Fernandes disse...

1. Utilizas a definição miníma de democracia como eles. Neste sentido é correcta a tua afirmação.

2. Chávez faz diplomacia sistemática junto das ditaduras, mais o facto de serem ditaduras é fundamental na hora de escolher as suas amizades diplomáticas, o que deveria ser suficientemente revelador. Neste sentido não se pode comparar-lo com o "realismo diplomático" de outras nações, por mais que nos pareça este último passível de crítica.

3. Meteres Israel nesta discussão é típica mas ainda assim e precisamente por isso não a esperava, no teu caso. De qualquer forma se sou complacente com Israel é algo relativo ao que tu considerarás não o ser. E não fugindo a questão, por mais absurda que me pareça, Israel vive um estado de guerra latente ou explícita com seus vizinhos faz já demasiados anos para que a sua situação política interna e/ou externa possa ser comparável com a de Chávez e Morales. Por isso mesmo a sua situação política, com tudo que se lhe possa criticar e há muito, não pode tão pouco se comparar com a de Venezuela e Bolívia. O problema destes dois últimos países está relacionado directamente com forças específicas e personalizáveis de uma forma que Israel não está. O problema de Israel é sistemático e sua solução ultrapassa as suas fronteiras a um nível que seria absurdo comparar por exemplo com os problemas que vemos na política venezuelana liderada por Chávez. Meter Israel ao barulho aqui sendo típico não me parece honesto mas tu lá sabes.

Ricardo Alves disse...

Caro Rui Fernandes,
em primeiro lugar não estou a usar qualquer «definição mínima» de democracia. Sempre tive muitas dúvidas em considerar o regime mexicano do PRI, por exemplo, democrático.
Em segundo lugar, não me parece que Chávez procure ditaduras na hora de fazer diplomacia. Parece-me que procura regimes «anti-americanos» (como o Irão ou a Síria) ou não muito alinhados com os EUA (como Angola ou a China). (Outra grelha de leitura tem que ver com o petróleo...) Acho que faz mal e que deveria apostar em aprofundar laços ao nível da América latina, mas não me parece que isso implique uma caracterização taxativa do regime venezuelano como sendo ele próprio uma ditadura.
Finalmente, não sei do que é que a minha referência a Israel será «típica». A tua obsessão com o Chávez também será «típica»? Honestamente, estava a tentar compreender qual é o teu critério para caracterizar um dado regime. Para mim, são pelo menos três os critérios: democracia, laicidade, Estado de Direito.

Rui Fernandes disse...

Os meus critérios básicos e fundamentais são democracia e estado de direito. O laicismo entra para mim mais tarde. E realmente acho que verás que todas as minhas opiniões obedecem de forma, considero, bastante rigorosa a estes critérios (ainda que tal como dissestes as minhas leituras não tratem o lado das coisas que a ti te apetece destacar).