sexta-feira, 28 de julho de 2006

O cúmulo da incoerência

Encontrei no Glória Fácil uma entrevista da Esther Mucznick absolutamente incrível. A entrevista é muito boa, mas as oscilações de Mucznick entre assumir o judaísmo como religião, «racializá-lo» ou subsumi-lo no vínculo político a Israel, tornam a entrevista algo alucinante. A esse respeito, uma passagem eloquente (entre muitas...) é esta:
  • «(...) ser judia é essa complexidade de relações, não se define só pela religião. Se fizesse um inquérito encontraria quem lhe dissesse que é ateu e judeu... NM- E um judeu católico, é concebível? EM- Não, porque opta por outra religião. NM- Ser ateu também é uma opção religiosa. EM- É completamente diferente. Optar pelo ateísmo não é optar por outra religião. Do ponto de vista da lei judaica, é judeu quem é filho de mãe judia...»
Portanto, quem for judeu e quiser passar a ser ateu tem que fingir primeiro que se converte a uma religião qualquer. Mesmo assim, talvez o continuem a considerar judeu por uma questão de «linhagem». Para complicar ainda mais, como há judeus etíopes e até, ao que consta, chineses e butaneses, a linhagem não é genotipicamente uniforme: é-se judeu por causa da opção espiritual da avózinha, e não se pode escolher abandoná-la. É uma opção espiritual transmitida geneticamente que dá direito a ser cidadão de um Estado do Médio Oriente. Mas o mais incrível é isto:
  • «É um Estado laico no sentido em que não há uma religião oficial, cada um escolhe a religião que bem entende
A afirmação é incoerente quer com a declaração de independência («Israel é um Estado judeu») quer com as palavras da própria Mucznick:
  • «Ao abrigo da Lei do Retorno, de 1952, todo o judeu — entendido como filho de mãe judia — pode adquirir a nacionalidade israelita. E houve vários padres católicos, filhos de mãe judia, que requereram a nacionalidade ao abrigo dessa lei. Aí os tribunais israelitas acrescentaram a condição de não conversão a outra religião
Portanto, no conceito de laicidade de Esther Mucznick inclui-se um Estado que decide a nacionalidade por critérios de religião. E onde o Estado não reconhece casamento civil. Se eu tivesse alma, ela estaria parva.

11 comentários :

dorean paxorales disse...

Esqueceste que, para além de tal, existem partidos estritamente religiosos com assento no Knesset (o sefardita Shas, e a União Nacional-!).
Apesar de tudo, tal ainda não se passa em Portugal.

Ricardo Alves disse...

É verdade. Impressiona-me realmente que os «pró-israelitas»/«pró-americanos»/etc considerem Israel uma espécie de irmão gémeo de qualquer democracia europeia ou americana. Não é.
Há partidos europeus de inspiração religiosa. Mas o Shas não é apenas um partido clerical, é um partido religioso. Não é bem a mesma coisa.

Anónimo disse...

Bem isso é o resultado de alguma herança histórica, muitas dessas normas vêem do tempo em que o inglaterra era a potência administrante (e mesmo de antes disso).

Também na europa há partidos "democrata-cristãos". Para regimes laicos, não está nada mal.

Na Holanda um grande número de partidos importantes são na prática representantes de religiões.

(ver por exemplo:)

http://en.wikipedia.org/wiki/Catholic_People%27s_Party

Não é que esses factos me agradem, mas antes de atirar pedras aos telhados...

José Simões

Ricardo Alves disse...

José Simões,
realmente Israel mantém regras do sistema otomano. É irónico que a Turquia tenha abandonado ostensivamente essas regras, enquanto Israel, supostamente mais «ocidentalizado», as mantém...
Quanto aos partidos democratas-cristãos, podem representar pontos de vista religiosos, mas repito: não é bem a mesma coisa do que um partido como o Shas, que foi fundado pelo Rabi-chefe sefardita, e onde o líder partidário muda a pedido do líder religioso...

Anónimo disse...

O que eu quis dizer é que penso que o regime israelita me parece muito mais parecido com os ocidentais que os outros regimes da região. E isto apesar de ser uma país que vive citiado pelos seus vizinhos que, lá para 1948, a seguir à resolução da ONU que criou uma zona judaica, foram todos a invadir militarmente essa zona.

Não sei se as nossas confortáveis democracias ocidentais registiriam a tantos anos de cerco.

Não sendo ideal (há partidos religiosos - mas também os há na Europa) há respeito pelas oposições, liberdade de expressão e religião. Há eleições nos quais partidos ganham e perdem o poder de modo pacífico. Caramba vi na TV manifestantes na rua contra a mais recente invasão do Líbano. E claro mulheres com cara destapada.

Portanto ENTRE essa democracia cheia de falhas E regimes feudais teocráticos didatoriais e absolutistas e/ou hereditários não é possível uma escolha?

A lógica de "está muito longe da perfeição" ser igual a "estão é tão mau como os outros todos" foi a lógica que sempre alimentou os totalitarismos.

Afinal as nossas democracias ocidentais são tão imperfeitas. Vamos acabar com elas e instalar algumas ditaduras???? Mal por mal, não é?

E as nossas liberdades cívicas. Tão imperfeitas.

José Simões


PS - Israel não existiria sem o apoio dos EEUU ???

Bem o mesmo se pode dizer da europa ocidental que sem o apoio dos EEUU seria uma parte do 3o reich (ou, quem sabe, mais umas repúblicas da URSS).

Mas se os EEUU (nem outro) não apoiassem israel e AO MESMO TEMPO nenhum outro pais fornecesse apoio - estou a falar de apoio bélico, claro - a nenhum dos seus vizinhos então sim a coisa fazia sentido. Nem acho má ideia e creio que israel iria subreviver.

dorean paxorales disse...

Caro Jose' Simoes:

Nao existem tribunais religiosos que julguem cidadaos numa democracia.

Em Israel ha'-os para todos os gostos.

Anónimo disse...

Tribunais religiosos????

http://en.wikipedia.org/wiki/Israel#Judiciary

http://en.wikipedia.org/wiki/Supreme_Court_of_Israel

(os links podem ter de ser esticados numa única linha)

José Simões

Milo Manara disse...

José Simões,

Formalmente não há tribunais religiosos. Mas um palestiniano quando se submete a um Tribunal Israelita não é tratado de forma igual, não lhe é concedida a oportunidade de se defender condignamente e incide sobre ele, desde logo, uma presunção de culpa, principalmente se o crime a ser julgado for contra o Estado de Israel. Além do mais, são frequentemente utilizados meios que são considerados tortura em qualquer pais civilizado.

Esclareço que não tenho nada contra o estado de Israel, não ponho em causa o seu direito a existir, nem tomo qualquer posição sobre este conflito. Mas chamar-lhe estado de direito parece-me excessivo.

dorean paxorales disse...

Milo Manara, haver os ditos há, o José Simões é que não os encontrou:

http://en.wikipedia.org/wiki/Israeli_judicial_system

E os juízes desses tribunais são, imagine-se, eleitos pelo próprio Knesset...

Anónimo disse...

Qual é o mal em serem eleitos pelo Knesset???

http://en.wikipedia.org/wiki/Knesset

Isso é mesmo um bom sintoma de "estado de direito", na minha sempre obrigatoriamente modesta opinião.

Afinal trata-se de um parlamento eleito por sufrágio universal directo secreto, onde as oposições têm frequentemente representação e passam ao poder nas eleições seguintes.

A maioria esmagadora dos observadores internacionais - e as TVs - podem seguir a eleições, falar com a oposição que critica o poder de cara descoberta, e existe uma forte maioria de observadores que considera que as eleições decorrem, como regra, de modo legal e existe liberdade de reunião, expressão, etc e essas liberdades são exercitadas.

Em que país da região os entrevistados - políticos OU cidadões na rua - criticam de cara descoberta os poderes (legislativo, executivo, militar, religioso, etc)

Claro que existem fragilidades nesse sistema mas que outro vizinho se aproxima assim de ser um estado de direito? Agora se buscamos a correcção completa, bem podemos ir preparando uma ditadura ou duas.

E claro, os árabes (e os pobres, e os ciganos, e os analfabetos, e os drogados) não são tratados de modo igual nos tribunais. MAS essa crítica é apenas a "versão leninista" da luta de classes que se pode fazer a quase todas as democracias ocidentais. Agora se buscamos a correcção completa, bem podemos ir preparando uma ditadura - cá também.

Ou, colocando a questão de outra maneiro, quando é que alguém foi condenado à morte ao espancamento ou à amputação por motivos familiares, morais ou religiosos?

E não faltam exemplos nesta zona tão mal tratada do mundo.

José Simões

Milo Manara disse...

Jose Simões,

Concordo com parte do que pretende dizer. É verdade que o modo de vida e os valores que regem a sociedade israelitas são infinitamente mais próximos das democracias ocidentais do que qualquer dos seus vizinhos. Isso parece-me indiscutível.

Mas o argumento dos pobres e dos ciganos não colhe, porque aqui ninguém persegue (muito menos tortura) ninguém POR ser pobre. Já um palestiano em Israel, POR ser palestiniano sofre de uma evidente capitis diminutio. Existe tortura, existe coacção, existem muitas e reiteradas violações aos direitos humanos em Israel.

Dito isto, repito, não demonizo Israel. Nos sempre falhados acordos de paz, por exemplo, não sei como se pode negociar ou transigir com uma outra parte que se contentará unicamente com a total aniquilação de Israel. Mas isso é outra história...