domingo, 2 de julho de 2006

Entre referendos

Na caixa de comentários do meu artigo sobre o (não) referendo europeu (sou dos poucos que ainda se preocupa com ninharias dessas...), apareceu uma interrogação sobre se o país que votará (novamente) em 2007 a inevitável questão da despenalização da IVG será muito diferente do país de 1998.

Não há nada melhor do que olhar para os números.

Então vejamos. Em percentagem, os casamentos civis passaram de 33% do total em 1998 para 43% em 2004 (último ano para o qual há dados disponíveis). No mesmo período, os nascimentos fora do casamento passaram de 20% do total para 29%, enquanto o número de divórcios por cada cem casamentos passou de 23 para 47. Todos estes sinais me parecem indicar um processo de secularização da sociedade portuguesa acentuado (ou seja, os comportamentos sociais são cada vez menos os recomendados pela religião dominante). Se isto terá alguma tradução ao nível da votação sobre a despenalização da IVG, já é outra questão. Mas é um facto que Portugal é cada vez menos conservador...

4 comentários :

cãorafeiro disse...

ricardo, lamento não poder concordar.

é certo tudo isso.

e isso indica uma influência directa menor da ICAR na vida das pessoas.

mas a mentalidade conservadora alimenta-se de outras formas, mais dificilmente mensuráveis.

existe um conformismo e uma carência de apego aos valores cívicos nesta sociedade que me confrange.

por vezes falo de certos valores cívicos, mostrando como eles ou a falta deles se reflecte no quotidiano, e é como se estivesse a falar de coisas extratosféricas.

o argumento decisivo em relação ao aborto, por parte das pessoas menos chegadas à ICAr, mas que mesmo assim votam não ou abstêm-se é:

NÃO HÁ JUSTIFICAÇÃO PARA O ABORTO UMA VEZ QUE A CONTRACEPÇÃO ESTÁ DISPONÍVEL.

se dissermos a alguém que usa este argumento que ele implica que uma mulher que fique grávida sem o desejar MERECE ser castigada snendo forçada a levar a gravidez até ao fim, estas pessoas não vão perceber e vão até ofender-se.

não vao perceber porque perceber implicaria assumir que a influência de moral católica sobre elas é muito superoir ao que elas julgavam, e, logo, que elas afinal não são assim tão livres.

e é muito difícil aceitarmos que se calhar não estamos a decidir a nossa vida livremente mas estamos a ser condicionados sem darmos por isso.

daí o conformismo.

para contrariar isto, só podemos apelar a um esforço de desconstrução do discurso dos defensores do não. não chega informar, é preciso persuadir, e essa persuasão é muito mais difícil quando em vez de apelarmos às emoções mostrando ecografias a cores em 3D e casos de prematuros com 25 semanas, apelamos à razão e falamos de liberdade, de valores cívicos, etc,etc,etc.

Ricardo Alves disse...

«cãorafeiro»,
é esse o país que temos. Nunca houve esforços significativos para criar uma cultura cívica baseada em valores republicanos e democráticos. Falta fazer uma grande pedagogia. Noutros países isso seria menos grave, mas com a nossa taxa de iletracia e com uma alfabetização muito recente, é difícil esperar que as pessoas desenvolvam um juízo autónomo por si próprias.

cãorafeiro disse...

sobre as gerações mais jovens:

tenho uma amiga que é assistente na faculdade que eu frequentei.

quando sairam as notas da primeira frequência da cadeira que ela leciona, houve uma sublevação geral dos alunos porque ACONTECEU QUE A MELHOR NOTA FOI ENTREGUE A UMA ANGOLANA:

o argumento xenófobo e racista foi usado explicitamente pelos alunos portugueses. uma aluna disse que «««vêm para aqui ESTES PRETOS TIRAR-NOS O LUGAR»»». quando a dita assistente procurou usar da pedagogia, qual não foi a sua surpersa quando o resto da turma se solidarizou com a aluna que emitiu esta frase racista...

isto não é um caso isolado.

quando eu estudei lá, já existia muito racismo, mas o que acontecia era que os alunos africanos eram ostracizados, mas nunca eram abertamente discriminados.

esse constrangimento que impedia as pessoas de fazer apreciações racistas está a desaparecer nos mais jovens.

outro exemplo: lido de perto com jovens recém saídas da adolescência e vejo quão doentia é a relação que muitas têm com os namorados, o que inclui uma enorme dose de violência psicológica e sexual, por trás de uma aparente liberalização dos costumes. muitas delas têm a auto-estima tão por baixo que nem lhes passa pela cabeça recusar os jogos sexuais impostros pelos namorados.

apesar de não conhecerem efectivamente a menor satisfação sexual com eles, nas conversas com as suas amigas ou com o grupo FINGEM que eles as satisfazem plenamente.

para elas fingir orgasmos é o único sucedâneo de prazer sexual que conhecem.

e fingem para que eles se sintam uns garanhões.

é claro que estas jovens não têm consciência da situação de alienação em que se encontram.

vários dos casos que conheço são de miúdas que já tomaram várias vezes a contracepção de emergência PORQUE OS NAMORADOS SE RECUSAM A USAR PRESERVATIVO.

nada disto se passa na província. passa-se em Lisboa, com pessoas que até são estudantes universitárias.

simplesmente, existe tanto fingimento para esconder o enorme sofrimento que está por trás, que é quase impossível passar essa barreira.

cãorafeiro disse...

«««Falta fazer uma grande pedagogia.«««

pois falta... e deveria ser feita desde muito cedo, mas não é.

lamento ser tão pessimista. gostava de ser menos pessimista, mas acho que se queremos mudar este estado de coisas, devemos começar por fazer uma avaliação realista da situação.


claro que os dados que fornecesses também são relevantes e indicam uma tendência contrária à que eu identifiquei.

mas a sociedade é marcada por dinamicas diversas que por vezes, em vez de concorrer, se tornam paralelas.
como se não existisse uma sociedade mas sim uma multitude de micro-sociedades.

mas no fim tem mais força que consegue ter os argumentos mais próximos da emoção, porque as pessoas acreditam que os sentimentos são mais verdaeiros que os pensamentos, sem preceberem que não há nada mais fácil de manipular do que as emoções, sobretudo numa esfera tão particular como a da sexualidade e da maternidade.