terça-feira, 15 de novembro de 2005

A miséria da ideologia

As clivagens obcecadamente ideológicas do debate político na blogo-esfera e fora dela enfastiam-me cada vez mais. Penso sobretudo nas guerras mesquinhas e maniqueístas que aconteceram na blogo-esfera na sequência do furacão Katrina ou dos motins nos subúrbios de Paris, mas também em artigos indigentes como o de José Pacheco Pereira no Público de quinta-feira. De súbito (e sobretudo à direita), parece que tentar compreender a realidade passou a ser visto como um luxo, e que tudo o que interessa é escolher uma trincheira. A partir desse momento, apaga-se o sentido crítico e liga-se o piloto automático.
Se se escolhe a trincheira da «direita», culpa-se o «anti-americanismo» por tudo e mais qualquer coisa, troça-se dos europeus em geral e dos franceses em particular (o que deveria ser considerado ódio de si próprio, já que somos, geograficamente, europeus e não norte-americanos), berra-se contra o «politicamente correcto» e o «multiculturalismo» (sem nunca esclarecer o entendimento desses termos) e responsabiliza-se o «estado social» e o «domínio mediático da esquerda» pela pobreza, pela violência urbana e pelo racismo. Se se escolhe a trincheira de certa «esquerda», culpa-se os EUA e o neoliberalismo por quase tudo (incluindo, por vezes, as evoluções climáticas), isentam-se os muçulmanos ou outros povos do terceiro mundo de responsabilidade ou vontade próprias, constroem-se teorias de conspiração que envolvem os média e a grande finança, etc.
Este fenómeno é particularmente visível nos estalinistas da direita. Personagens como José Pacheco Pereira, João Carlos Espada ou José Manuel Fernandes são fascinantes porque encerram em si próprios a tragédia da vida intelectual portuguesa dos últimos cinquenta anos. Explico-me: passaram do catolicismo da infância e da adolescência para o marxismo-leninismo-qualquer-coisa da juventude, e na meia-idade encontram-se num «liberalismo» tão fanático que é um autêntico estalinismo virado do avesso. O «paraíso» imaginado na infância era o católico, foi a China ou a Albânia na juventude, e é hoje o Reino Unido ou os EUA. Sente-se que defender o desempenho dos sistemas político-económicos destes países e acreditar na suprema felicidade dos seus habitantes é-lhes inseparável da escolha ideológica que fizeram. Nunca lhes passou pela cabeça que a realidade poderá ser mais complexa do que qualquer teoria, e que nenhuma torna em anjos quem a ela adere, prevê o futuro histórico ou libertará a humanidade da miséria ou da violência.
No entanto, ter uma ideologia poderia consistir apenas em sistematizar princípios éticos, incluindo as relações entre eles. (Por exemplo, o comunismo coloca a igualdade como um valor acima dos outros; o neoliberalismo considera unicamente a liberdade económica; o republicanismo o equilíbrio entre liberdade, igualdade e fraternidade; etc.) Não tem que ser uma grelha de interpretação da realidade válida em todos os lugares e em todas as épocas, ou uma teoria final sobre a natureza e as necessidades humanas e sobre uma (utópica) harmonia social. Claro que tudo isto era fornecido em pacote pelas religiões monoteístas pré-modernas, e que por isso, no século 20, se exigiu o mesmo às ideologias utópicas. (Apetece dizer que se as religiões eram heroína, as utopias são metadona.)
É evidente que os nossos primos chimpanzés também se dividem em tribos mutuamente hostis. Não tenho tanta certeza de que se afundem no pensamento dicotómico que envenena a cultura ocidental. Já marcar pontos em qualquer disputa ou ter uma mundividência padronizada poderão ser necessidades inelutáveis do ser humano. Mas o ser humano também sabe separar os campos de aplicação de cada abordagem. A ciência permite-nos concordar quanto aos factos. E o bom senso deveria ajudar-nos a olhar para a realidade social sem a incluir em disputas ideológicas mesquinhas.
Se tudo correr bem, o século 21 será tão pós-utópico como o século 20 foi pós-religioso.

2 comentários :

Geosapiens disse...

...talvez não...a utopia...é uma crença...e como crença...não é organizada...nem tem clero ou respresentantes...simplesmente existe...por esse motivo...o século 21 ser pós-utópico...será bem utópico...;)

Gaspar LDVS disse...

Como falas verdade!!